Romaria – os passos e as vozes

Tive, de novo, oportunidade de acompanhar de carro ou a pé, durante um dia, um rancho de Romeiros em S. Miguel.

E captar imagens e sons para um programa de televisão. Tudo me pareceu eterno e novo. Tenho acompanhado atentamente, e com admiração, a forma como uma devoção genuinamente popular e “laica” se tem adaptado aos novos tempos sem nada perder da sua genuinidade. Poderá algum romantismo fazer reparo à evolução que aconteceu. Mas a história só se enriqueceu com a forma mais consciente com que se processa, como se respeitam os aspetos de sacrifício que a peregrinação comporta, maior atenção e cuidado por cada romeiro, pela sua preparação espiritual, pela sua caminhada, pelo seu repouso, pelo sentido de fraternidade e entreajuda. E tudo associado a um tempo de interioridade que cada qual vive na medida em que entende, assume, e no grau de aproximação à fé em que se encontra. A Romaria tem esse segredo precioso que exprime num regulamento que ela própria cria. Aqui é vencido, de forma serena, o aparente conflito que se pode verificar noutras expressões religiosas populares entre o respeito pelo “folclore” – o genuinamente popular – e a expressão religiosa que se integra nas linhas fundamentais da espiritualidade católica, sem ser sujeito às rubricas que desenham as suas celebrações litúrgicas.

Mas anotei a participação perfeita e espontânea na celebração Eucarística, na devoção do Rosário, nas diferentes orações espontâneas ou preparadas pelo Mestre, na escolha dos cânticos, deixando sempre em primeiro plano o toque gregoriano e dolente dos Romeiros que sublinha passos, respirações, pausas, perfeitamente sincronizado nas sílabas e no tom penitencial que acompanha um rancho do nascer ao declinar do dia. Pode, sem forçar classificações, considerar-se uma liturgia popular que se enquadra nas linhas da liturgia oficial, com uma referência constante à Palavra e a expressão forte duma comunidade de vivência mais intensa – aquelas vozes incansavelmente barítonas e sonoras que com o seu ímpeto como que rompem os céus! Uma lição para as comunidades que caíram na rotina.

Não passa desapercebido o respeito profundo de todos os que se cruzam com a Romaria – ninguém pergunta a ninguém se é crente ou não – para com estes homens que deixaram as suas terras, casas, famílias, para integrar um mosteiro ambulante que entoa louvores e súplicas entre montanhas, planícies, atalhos ou estradas de trânsito normal que já se foi habituando a conviver com grupos de 50 ou 70 pessoas. O Mestre e Procuradores são guias para os locais desérticos ou desconhecidos ou para os meios urbanos ou estradas regionais. O presente acaba por conviver com o passado.

Não estou a referir mais que evidências que se enquadram num mapa e calendários das Romarias Quaresmais cuidadosamente programado, divulgado na imprensa, nos variados sítios da Net, que trazem um manancial de informação e integração duma iniciativa pura na tradição, com um programa rigoroso para cada dia, com partidas e dormidas acertadas, celebrações preparadas, entendimento perfeito entre diversos Ranchos que enchem de sons a Ilha de São Miguel , mas mais que isso como que tomam a ilha sobre os seus ombros para a apresentar a Deus, referindo-lhe todos os problemas, angústias e alegrias. Notei isso particularmente nesta Romaria essencialmente composta por jovens: com uma alegria serena e o passo seguro como quem sabe para onde vai e não tem medo de rasgar o futuro. No caso, com Cristo, com Maria, com o povo, com os pesos que por vezes parecem esmagar o mundo. Uma coisa senti todo tempo: a Romaria é um ato de fé. Todos sabem que sem fé não fariam sentido os passos e vozes que atravessam a nossa terra.

 

Nota: Agradeço ao Mestre que me autorizou este acompanhamento que, espero, não tenha perturbado a caminhada espiritual dos 59 Romeiros do Cabouco, numa peregrinação inesquecível entre a Povoação e Ponta Garça.

Pe. António Rego/ In: Igreja Açores

ENTREVISTA AO IRMÃO TOMAZ DENTINHO

Tomaz Dentinho é professor Universitário, no departamento de Ciências Agrárias na Universidade dos Açores.

Vive há 30 anos na ilha Terceira. É uma das vozes mais escutadas na análise económica da região. Católico comprometido em diferentes movimentos da igreja aceitou responder às questões do Sítio Igreja Açores, justamente no fim de semana em que se desloca a Ponta Delgada para falar aos Romeiros de São Miguel sobre a Alegria de Ser Cristão.

Na bagagem traz-lhes um desafio quase metafórico: “irem a pé de Lisboa à Europa, por Fátima, Santiago e pelos Caminhos de Santiago em sentido contrário, como se fosse uma cruzada da periferia para a Europa, ensinando-a a rezar e expandindo o que se faz nos Açores à Europa e todo o mundo”. Sobre o atual momento, lembra que já vai na terceira crise que espera que seja “a última a ser agravada pela demagogia política a que nós todos fomos sendo vulneráveis”. Sublinha que “a miséria desresponsabiliza as pessoas de viverem com dignidade e de procurarem melhorar em termos materiais e espirituais” e deixa uma mensagem clara à igreja que tem “que actualizar a Doutrina Social aos desafios da globalização e do século XXI” e ser sobretudo mais ágil na denúncia “de má gestão pública”.

Quanto aos ventos de mudança que sopram na igreja, impulsionados por Francisco –“uma esperança segura”- Tomaz Dentinho fala, ainda, do próximo sínodo e da importância que é os católicos “não criarem um estereótipo de família supostamente cristã excluindo as que provêm de outras culturas e que são também promotoras do amor entre as pessoas, a educação dos filhos e a estruturação da sociedade” . ler +

www.igrejaacores.pt

Francisco

Esta semana as Romarias Quaresmais de São Miguel estiveram em destaque na Praça de São Pedro, em Roma.

Receberam a bênção concedida pelo Papa Francisco a todos os Romeiros e seus familiares, a quem agradeceu as orações, pedindo ao Espirito Santo que continue “a aplanar” as estradas da fé, destes homens que durante a Quaresma, cumprem a sua caminhada.

Os Romeiros de São Miguel são, porventura, um dos marcos de maior expressão da religiosidade popular nos Açores.

E, a piedade popular é a primeira forma de «inculturação» da fé, que deve deixar-se orientar e guiar, continuamente,  pelas indicações da liturgia, mas que, por sua vez, a fecunda a partir do coração, entrando na vida quotidiana.

Num tempo cinzento como o nosso, em que o mundo parece estar nas mãos da incompetência intelectual, da ganância económica e da iliteracia ética, em que o imediatismo e a indiferença reinam, desprovidos de quaisquer valores, só este Papa poderia valorizar esta prática, reconhecê-la e abençoa-la.

O mesmo Papa que, quando iniciou o pontificado, não hesitou em escolher o nome de um santo de proximidade, de pobreza e de amor, para responder perante os homens.

Como se não bastasse, Francisco  que veio “do fim do mundo”,  publicou uma exortação apostólica “A Alegria do Evangelho” que, entre outras coisas, constitui uma contundente recusa da miséria moral em que habita a nossa sociedade desgastada pela “idolatria do dinheiro” e pelo desprezo da condição humana.

Francisco revela ser um homem de gestos simples. Fala-nos com o sentido do coração. Talvez por isso, as suas palavras são sempre mais ouvidas.

Nas aparições diárias toca a sensibilidade, a mente e o coração das pessoas, com testemunhos, que o estilo familiar reforça, sem que daí resultem alinhamentos ideológicos fáceis.

E, é isso é que irrita os seus oponentes:a sua espantosa liberdade, com a qual tece palavras, que valem como inspiração de criatividade na Igreja e na sociedade.

Não são doses de doutrina sobre a fé da Igreja, nem receitas repetidas sobre a moral católica. Também não são um novo estilo só para dar ares de modernidade. São , mesmo, uma nova cultura.

Este Papa não é escravo do passado, não cega com a última moda, nem adia tudo para o futuro. Pratica o discernimento permanente, acrescentando-lhe um caracter profético, ciente de que sem profecia cai-se no clericalismo e na lei. É assim no Evangelho, quando os sacerdotes se assumiram como donos do templo esquecendo-se que Jesus era maior que o templo.

O profeta é o homem de olhar penetrante que escuta a palavra de Deus.

Francisco olha-nos nos olhos com a ternura e a complacência de quem nos entende, mesmo sem nos conhecer. Pode não ser um Teólogo mas é um cristão completo à frente do Vaticano. De doutrina e de ação. E isso faz toda a diferença.

Carmo Rodeia

SACERDÓCIO EM ROMARIA

O Movimento dos Romeiros promoveu, no dia 16 de novembro, uma formação de «procuradores das almas» para «procuradores das almas».

Embora não fossem graduados em ciências teológicas, os palestrantes, leigos casados e pais, apresentaram, com o coração, a sua experiência de um modo reflexivo e profundo.

A tarefa essencial do «procurador» é intermediar a oração, fazer a ponte espiritual entre os romeiros e os fiéis que encontram no caminho, em última análise entre os que assistem à romaria e Deus, que os romeiros procuram servir de um modo especial.

Acima de qualquer promessa, hábito, tradição ou passeio, a romaria consiste num serviço sacerdotal, pois realiza a mediação entre Deus e a humanidade, à imagem dos antigos sacerdotes. Essa função atingiu o clímax na encarnação do Verbo (Jo 1:14): em Jesus de Nazaré, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, a ponte entre o Eterno e o tempo fica para sempre garantida. Jesus é o pontífice por excelência (Hb 3:1).

Esse ofício sacerdotal do romeiro exerce-se intensamente nessa semana de retiro quaresmal. Primeiro, ele reflete sobre a sua missão sacerdotal na família e no trabalho, como canal livre e inteligente da Sabedoria de Deus para cada situação. Depois, apresenta a Deus o mundo e o seu mundo, sedento de graça, carente do Espírito.

Tal como o padre, o sacerdote ministerial, nas comunidades cristãs, intervém por que cada cristão exerça, no dia a dia, o seu sacerdócio comum (Vaticano II, Lumen Gentium 10-11), também o procurador das almas incita os irmãos romeiros a realizar o seu papel de mediadores, assim na caminhada como, depois, na vida normal.

A romaria é uma escola verdadeiramente sacerdotal. Os romeiros sabem que, sem Deus, a humanidade sucumbe, a vida perde valor. Destarte, procuram tomar consciência da dignidade de reino de sacerdotes (Ex 19:6) a que todas e todos, humanos e criaturas, são chamados, como verdadeiras filhas e filhos de Deus.

Os Romeiros não são um movimento periférico. Mas, se tiverem de carregar esse título às costas, sentem-se uns privilegiados marginais nos caminhos de Emaús, aqueles onde Jesus ressuscitado se deu a conhecer no partir do pão (Lc 24).

Maria, a primeira grande procuradora das almas, ou seja, sacerdotisa, da Nova Aliança, leva ao colo cada romeiro na sua peregrinação pelas ruas de São Miguel, formando o seu coração para, à imagem do seu Filho, compreender e viver o seu sacerdócio ao longo de todo o ano (1 Pe 2:5.9).

Ricardo Tavares, In A Crença, 21.11.2014
donamaat@gmail.com – facebook.com/PadreRicardoTavares – Igreja Açores