ROMARIAS QUARESMAIS

Um dos livros que menciona esta realidade é o livro “A VILA” volume IV de Urbano Mendonça Dias, editado em 1919, em que num dos seus capítulos fala dos Romeiros da Quaresma, o qual passo a citar:

“É de longa data entre os povos Micaelenses percorrerem em Ranchos, numa semana inteira os Templos, onde haja em veneração a Imagem da Virgem, dirigindo-Lhes súplicas, ou agradecendo-lhes favores.

A constituição orgânica de uma Romaria obedece a preceitos estabelecidos de longo tempo, a usos e costume tornados leis, que todos respeitam, todos acatam numa simplicidade e obediência verdadeiramente Cristã.

É durante a época Quaresmal que tem lugar esta piedosa prática através da Ilha de São Miguel; não conheço tal uso em nenhuma das outras Ilhas; o correr da costa, como dizem, é particular á Ilha de São Miguel. E homens, mulheres e crianças, todos acorrem a esta devoção piedosa, percorrendo durante sete compridos dias, debaixo de um rigor de Congreganistas, todos os Templos onde haja uma invocação à Virgem, para lhe deporem as suas orações, e oferecerem os seus sacrifícios, que não são realmente poucos em obediência, em canseiras, em desconfortos, ao sol, à chuva, ao vento, numa semana inteira, através de maus caminhos.

Onde se possa entroncar a origem das Romarias, não o podemos de uma maneira categórica afirmar, mas no dizer do povo, e o povo em seus ditos sempre tem razão, semelhante religiosidade vem do tempo do grande “castigo” em Vila Franca, da subversão de 22 de Outubro de 1522. (…)

Seria esta devoção a origem das Romarias Quaresmais que o povo do campo hoje faz à Virgem?

O povo diz que sim, mas não dá outra razão que não seja a da penitência.

Para o assunto, transcrevo a parte da visita Pastoral que o Dr. António Borges Delrio, Vigário geral das Paróquias do norte nesta Ilha de São Miguel fez à Igreja do Espírito Santo do lugar da Maia, em 14 de Outubro de 1705. (…)

O Mestre é a primeira de todas as figuras do Rancho, é ele quem preside ao auto processional, ele quem dirige as orações, ele quem oferece, quem suplica a Deus e à Virgem as inúmeras preces de que vem incumbido. Ao Mestre deve-se obediência, todas lhe beijam a mão, de manhã e à noite, é ele quem dá o sinal de descanso e a ordem para de novo se começarem as preces. O seu lugar é no fim do Rancho, a meio das alas que os Romeiros formam pela estrada fora. É o primeiro que ajoelha, é o último que à noite se recolhe a descansar, é o primeiro que na madrugada seguinte se apresenta para a nova caminhada. È quem pede ao anoitecer, na freguesia ou Vila onde chega, pousada para os Romeiros, é o que agradece os favores recebidos, é o responsável por qualquer anormalidade que se dê entre os Romeiros, e, por ser o primeiro entre todos, é o ultimo a receber favores, é o ultimo em regalias. E hierarquicamente abaixo do Mestre há o Procurador das Almas que tem seu lugar a meio do Rancho, porque é ele que pela estrada fora dirige as preces e pede a aplicação delas, é quem recebe durante o trajecto os pedidos de diferentes pessoas, para orações aplicadas a intenções diversíssimas; daqui lhe vem o nome de Procurador, e das Almas lhe chamam porque de nome próprio, de quando em quando, manda por elas rezar rodo o Rancho:

Pelas Almas do Purgatório, Padre Nosso, Avé Maria e todo o crente que pede ao Procurador alguma oração, fica por esse obrigado a rezar tantas dessas orações, quantos os Romeiros que vão no Rancho, que cada um deles reza a oração pedida.

Quem é o Procurador? Perguntam essas criaturas, cheias de fé, dos lugares por onde vai passando a Romaria. E um qualquer do Rancho o aponta; em geral é um velho já corcovado ao peso dos anos. E elas vão então segredar-lhe, pedindo uma oração pela alma do ente querido, ou pela boa nova de um despacho que espera.

– E quantos sois? Perguntam então já de modo que todos ouçam. Deus Vos guie na Vossa Romaria.

A terceira e última figura do Rancho é: O Guia que vai à frente de toda a Romaria, porque e o prático dos caminhos, das veredas, das ribanceiras por onde todo o Rancho tem de passar, para ir pelos mais curtos atalhos até todas as Ermidas e Igrejas espalhadas por toda esta Ilha de São Miguel, onde haja uma invocação à Virgem Maria. É um velho, em geral batido em longos anos naquela caminhada.

Nenhuma destas figuras usam porém distintivo que a diferencie dos outros, que o trajo é igual, e cifra-se apenas num lenço de cor atado à cabeça, chaile a tiracol, e sovadeira às costas, presa por uns cordéis aos ombros, cajado numa mão, Rosário dependurado na outra.

A comida, que pouco mais varia do que pão e queijo, levam-na os Romeiros na sovadeira, e dá até meia jornada, que aí lhe vão as famílias ao encontro e lhes reformam a comida para o resto da viagem.

 

 

ORGANIZAÇÃO DO RANCHO

O Mestre, o Procurador das Almas e o Guia, são as três personalidades consagradas pelo tempo em seus ofícios; esses são infalíveis nesta piedade todos os anos, que a substituição de qualquer deles não é coisa fácil; os mais Romeiros vão por devoção somente em cumprimento de promessas feitas, ou para desagravo de qualquer pecado ou caso de consciência.

Quem deseja, pois, ser Romeiro, solicita do Mestre a permissão de ir em sua companhia, e uma vez aceito pelo Mestre fica arrolado e apalavrado para em certo Domingo comparecer na Igreja Paroquial, prometendo ao Mestre obediência conforme a regra.

No Domingo escolhido comparecem todos os Romeiros, confessam-se, comungam, assistem à missa d’alva, finda a qual se vão juntar ao Mestre e de joelhos ante o altar do Santíssimo Sacramento ouvem a primeira oração. Eis a que se fez no ano findo no lugar de Agua D’Alto, deste concelho de Vila Franca do Campo:

«Ó Deus, que no admirável Sacramento da Eucaristia nos deixaste uma memória da Vossa Paixão, eu Vos louvo.

Quando atentamente eu considero nos Vossos dolorosos passos no Monte das Oliveiras, logo no princípio da Vossa Paixão, vejo-vos sumamente agoniado e aflito pela triste lembrança dos padecimentos que por mim Ieis sofrer, e pela triste ingratidão com que eu Vos havia correspondido.

É que Vós, Meu Deus, já então Vieis as cordas, os açoutes, a Coroa de Espinhos, a Cruz, os pregos, enfim todos os instrumentos da Vossa Paixão e morte.

Vejo agora que tanto eu como muitos pecadores Vos ofendiam, e só bastou essa triste lembrança para Vos fazer atormentar, e tanto que o sangue rebentou-Vos por todas as partes do corpo, ensopou Vossos vestidos e correu pela terra.

Ah! Meu Jesus, não foram açoutes, nem os duros ferros que no jardim da Oliveiras Vos fizeram rebentar o sangue, foi só a lembrança dos meus pecados, fui eu Senhor o cruel algoz que estão Vos atormentou, do que só agora muito me pesa.

Mas a minha dor ainda cresce, quando me lembro que um pérfido Judas Vos vendeu por trinta reais, e Vos entregou com beijo de traição nas mão dos Vossos inimigos, que Fostes preso como um ladrão e arrastado de rua em rua, de tribunal em tribunal, como criminoso, que Fostes cuspido, esbofeteado, escarnecido e blasfemado e tratado com o mais ínfimo dos homens.

Ah! Meu Jesus, para que começam as Vossas Paixões com tantos excessos, tantos insultos e tantos desprezos?

Respondeste Vós meu Jesus:

– «Para te mostrar o grande excesso do Meu amor para contigo, e para começares deveras a amar-Me». Mas ah! Meu Jesus como pensando eu nos Vossos padecimentos, não arde de amor por vós? Porque não sou como muitas almas santas, que considerado em Vossos padecimentos, se deram todas a vós? E como é possível que a minha alma considerando nos Vossos padecimentos não seja ferida de amor por Vós?

Ah! Meu Jesus, quem à vista desta dolorosa pena deixará de se comover? Só um coração de pedra dura, como o meu, deixará de sentir os Vossos padecimentos.

E como foram crescendo os Vossos tormentos pelo meu amor! Em tão lamentável estado ficaste depois de açoutado e coroado de espinhos e ainda mão se abrandaram os Vossos inimigos, e quando Vos conduziram à varanda de Pilatos todo ferido e ensanguentado, e Vos mostraram àquele povo feroz para que se aquietassem, eles gritavam para Pilatos:

-«Crucifica-o, crucifica-o. »

Mas Pilatos que por lado um lado via a Vossa inocência, por outro temia perder o seu governo, por isso Vos entregou nas mãos dos Vossos inimigos, e contra Vós lavrou a sentença de morte de cruz. E os Vossos inimigos vo-la apresentaram, e Vós mesmo Senhor a pusestes em Vossos ombros, e com ela caminhastes para o Calvário afim de seres nela pregado.

Porém, o muito sangue que Tínheis derramado, os grandes tormentos que já Vos tinham feito perder as forças, o grande peso da cruz é sobretudo Senhor a grande lembrança dos meus pecados, Vos fizeram cair algumas vezes em terra, e assim Vos feristes em Vosso Divino Rosto nas pedras das calçadas, em Vossos joelhos nos duros caminhos, e com a maior crueldade Vos levantavam, pegando-Vos pelos cabelos e pelas barbas, dando-Vos pontapés, puxando-Vos por uma corda que Vos cingia o peito, e assim Vos levaram ao cima do Monte Calvário.

Ah! Meu Jesus que tanto padeceste para me obrigar a amar-Vos. Se Pilatos Vos mostro todo ferido e ensanguentado àquele povo, pata ver se acaso se abrandava, Vós Senhor melhor do que Pilatos aí nos estais dizendo nesse Divino Sacramento:

– «Eis aqui o homem Deus que tens afligido com os teus pecados»

Mas ah! Que cena tão triste se contemplou na Vossa paixão:

Os Judas Vos arrancaram a túnica, Vos deitaram sobre a Cruz, pregaram nela com agudos cravos os Vossos pés, as Vossas mãos, abriram-se as Vossas veias, rasparam-se os Vossos nervos, abriram-se novas fontes de sangue, levantaram-Vos ao ar, na mesma Cruz com o Vosso corpo pregado e por espaço de três horas estivestes por meu amor sofrendo e agonizando sem achardes descanso em ninguém.

Ah! Me Jesus, quem me dera também morrer por Vosso amor, ao menos morrer na Vossa Divina graça. Se tão boa sorte não tiver, infeliz de mim que ficaram assim perdidos todos os Vossos padecimentos, o Vosso sangue e a Vossa morte. Mas não, meu Deus não há-de de ser assim, eu espero na Sua grande misericórdia que me haveis de ajudar com a Vossa graça, e com a mesma graça Vossa hei-de de Vos ofender, para minha alma gozar lá na bem-aventurança.»

E o Mestre, voltando-se agora para a Imagem da Virgem, da Senhora a quem vão visitar peregrinando durante sete dias através de toda a Ilha, parar em todas as suas Ermidas lhe oferecerem suas orações e sacrifícios, dirigi-lhe a sua primeira oração.

Eis umas das que usam e eram usadas:

 

Deus Vos salve clara Estrela,

De Deus e do mar mui bela,

Nós pedimos Vossa luz,

Que nada somos sem ela.

(…)

Salvé Vós Maria Santa,

Rosa Mística de Sião,

Alcançai-Nos piedosa,

De Vosso Filho perdão.

(…)

Eu Vos peço Santa Estrela,

Que abrandeis minha dureza,

P’ra toda a vida louvor,

A Vossa Santa grandeza.

 

 

Finda a Salva, como se diz em linguagem de Romeiros, o Mestre inicia os seus pedidos:

–  Seja louvada a Sagrada morte e Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Ao que os Romeiros respondem:

–  Seja para sempre, e sua Mãe Santíssima, Senhora Nossa.

E o Mestre então:

–  Pela Sagrada morte e Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo,

Padre Nosso, Avé Maria

–  E pelo último suspiro que o Senhor deu ao pé da Cruz, pelos nossos grandes pecados:

Padre Nosso, Avé Maria

–  Em reverencia ao Santíssimo Sacramento da Altar, para que permita que ninguém morra sem o receber em estado de sua divina graça:

Padre Nosso, Avé Maria

E segue-se uma enormidade de pedidos que todos ouvem com maior respeito e a que com a maior devoção respondem rezando as orações pedidas, e por fim o Mestre:

–  E à Virgem Nossa Senhora da Paz, para que restabeleça o sossego em todas as Nações e olhe com seus olhos de piedade para a nossa Nação Portuguesa livrando-a da peste, da fome e da guerra:

SalveRainha

E finda esta oração, o Mestre ao levantar-se recita ainda:

–  O anjo São Gabriel descendo do Céu à terra, a anunciar à Virgem saudosa:

Avé Maria

 

E todos já de pé, com seu cajado na mão, saem da Igreja cantando em altas vozes a Avé Maria, e lá vão os Romeiros agora rua fora em busca de todas as Igrejas e Ermidas da Ilha onde haja uma invocação à Virgem, divididos em duas longas alas, cantando os da frente Avé Maria e os de trás Santa Maria.

Quando chega à hora do almoço, em qualquer sítio mais sombrio da estrada, o Mestre ao toque de uma campainha:

–  Seja louvada a Sagrada Morte e Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.

E todos os Romeiros respondem:

–  Seja para sempre, e sua Mãe Santíssima Senhora Nossa.

–  Deo Gratias

E todos se acomodam, comendo um pouco da sovadeira.

Findo o almoço o Mestre levanta-se, e juntamente todos os Romeiros, e então aquele recita a seguinte oração:

«Infinitas graças Vos sejam dadas Bom Deus e Senhor, por nos teres criado e conservado até agora, dando-nos o sustento para a vida. Vós com admirável providencia alimentais todo o animal, e também Nos alimentais, criaturas Vossas, não só com o pão, mas com as mais coisas que nos tendes repartido. Por tantas graças e favores que nos tendes feito sejais Vós sempre bendito.»

Padre Nosso, Avé Maria

E um pouco depois o Mestre ainda:

–    Em louvor do banquete das alas:

Padre Nosso, Avé Maria

–    Em louvor da ceia que Nosso Senhor deu aos Apóstolos:

Padre Nosso, Avé Maria

–    Em louvor das almas que estão no Purgatório:

Padre Nosso, Avé Maria

–    Por alma dos nossos parentes, amigos e benfeitores:

Padre Nosso, Avé Maria

–    E à Virgem Nossa Senhora para que no dê saúde, paz e a sua divina graça, e nos depare alguma coisa para nosso alimento:

Salve Rainha

 

Oferecimento:

Aceitai Senhor estas nossas pobre orações em sinal de agradecimento, pelo que devemos por tão altos benefícios, e continuai a repartir com os nossos parente amigos e até com os nossos inimigos.

Ó Precioso Alimento, para Vos servirmos, permiti, que assim como nós nos juntamos a esta mesa para tomarmos esta refeição, nos juntamos depois à Vossa mesa no Céu comendo o pão dos escolhidos em nome do Padre, do Filho e do Espirito Santo.

 

Avé Maria

 

E os Romeiros de cajado em punho lá vão pela estrada fora em busca das Casas da Virgem, entoando em sua música plangente aquela linda saudação à Virgem: Avé Maria

Pernoitam na freguesia onde os surpreende a noite aboletados pelas casas dos vizinhos, que sempre há quem os queira receber. Os primeiros a serem recolhidos são as mulheres, as crianças depois, e o último de todos é o Mestre. Ao outro dia, logo pela madrugada, depois de assistirem à missa, que por vezes é mandada rezar pelo Rancho, o Mestre com todos os mais de joelhos recitam a oração da manhã:

Bendita e louvada seja a luz do dia,

Bendita e louvada seja quem a cria,

Bendita seja o Filho e a Virgem Maria.

Bendito sejais me Deus, por nos teres dado vida até agora. Por efeito da Vossa bondade começo hoje este dia, merecendo por meus pecados hoje este dia, merecendo por meus pecados já estar contado entre os mortos e condenados, pelo que Vos ofereço todos os meus bons pensamentos, palavras e obras que neste dia praticar, juntamente todas as indulgencias que nele ganhar, tudo isso deposito nas Vossas mãos e mãos de Maria Santíssima, para repartirdes pelas almas do purgatório a favor das quais faço voto de renuncia livre do pecado. Proponho, Senhor, desde já, e nem em tempo algum consentirei pecado ou ofensa Vossa graça, pois que sem ela nada posso.

Padre Nosso, Avé Maria

–    Virgem Santíssima, senhora Nossa e Boa Mãe, ajudai-nos neste dia a servir a Deus:

Salve Rainha

–    Anjo da Guarda, guardai-nos e defendei-nos de todos os perigos da alma e corpo:

Padre Nosso, Avé Maria

–    Santo ou Santa do nosso nome, ou deste dia, ajudai-nos também:

Padre Nosso, Avé Maria

Está terminada a oração, os Romeiros seguem novamente a peregrinar no resto da Ilha atirando aos ares a sua linda canção: Avé Maria

E sete dias passados, eis que de novo os Romeiros entram na sua Igreja Paroquial e então se despedem uns dos outros, que findam aqui a devoção.”